quarta-feira, março 30, 2005

O Primeiro Capítulo.


Para quem desejar conhecer um pouquinho mais sobre o meu livro “A Lenda do Violeiro Invejoso”, aqui está a reprodução do primeiro capítulo. Espero que vocês gostem e, se quiserem mesmo saber como termina a história, basta comprar o livrinho, né? Afinal o autor também precisa garantir o leite das crianças...

Capítulo 1. O menino Invejoso.

No tempo em que o avô do meu bisavô era menino, havia no alto da Serra do Pacurité uma casinha de barro coberta de sapé. Nela morava um senhor de longas barbas e cabelos brancos. Seu nome era Juvenal Brás e ele, quando mais moço, havia sido um cantador famoso e respeitado.
Em sua juventude, não havia muita diversão para o povo. Nada de cinema, televisão ou rádio. Por isto, os cantadores – também conhecidos como violeiros – eram muito queridos nas cidades do interior. Eles sabiam tocar viola e conheciam um mundo de histórias, todas elas cantadas em versos.
E Juvenal sabia fazer versos como ninguém. Era tão bom que o povo passou a chamá-lo de mestre Juvenal. Nos dias de feira, ele sentava-se com sua viola em um banquinho e, ao som daquela música suave, ia cantando e contando histórias, cada uma mais bonita que a outra. Histórias de princesas, de fadas, de guerreiros, de dragões.
Assim que o mestre chegava à praça, logo se juntava uma multidão a sua volta. As mocinhas pediam temas de amor, e Juvenal cantava. Os rapazes pediam romances de aventura, e Juvenal também cantava. Não havia história que aquele homem não soubesse.
De vez em quando aparecia algum outro cantador na cidade e desafiava o mestre para uma peleja. Nesses dias, a multidão vibrava e vinha gente de muito longe só para assistir ao formidável duelo em versos.
Juvenal era imbatível numa peleja. Quando ele pegava na viola, os outros cantadores tremiam de medo. Soltando sua voz de trovão, ele começava sempre assim:

O meu nome é Juvenal,
É assim que eu me apresento.
Eu sou bravo como um touro,
Sou ligeiro feito o vento.
Na poesia sou mais forte
Do que o coice de um jumento.

Os adversários ainda tentavam responder, mas em poucos minutos estavam de língua de fora, tontos diante da rapidez com que o mestre ia criando seus versos. Ao final da peleja, Juvenal sempre voltava para casa aplaudido e carregado pelo povo, enquanto o perdedor, de cabeça baixa e orelha quente, tratava logo de deixar a cidade, completamente desmoralizado.
Os anos foram passando e o mestre envelheceu. Seus cabelos ficaram brancos e ele passou a caminhar com dificuldade. Já não ia mais à feira como antigamente, embora fosse ainda muito querido e respeitado por todos. Sua grande distração agora era poder ensinar os segredos de sua arte a Marcolino e Balbino, seus dois afilhados. Eles eram gêmeos e haviam sido deixados em sua porta, dentro de um cesto, em uma noite de natal. Juvenal recolhera os dois bebês e criara-os em sua casa com todo o carinho. Os meninos tinham agora doze anos e eram a alegria do velho cantador.
Para grande satisfação do mestre, desde cedo os garotos demonstraram habilidade para fazer versos e tocar viola. Balbino era um bom poeta, mas Marcolino era três vezes melhor. Ao vê-lo tocar, o velho se enchia de admiração e sorria orgulhoso. Todos diziam que esse menino, quando crescesse, iria se tornar um violeiro ainda mais famoso do que Juvenal.
Não que Balbino cantasse mal, mas todos logo perceberam que era seu irmão quem possuía aquele talento excepcional para encontrar as rimas certas e as palavras mais bonitas, arrancando aplausos da audiência e suspiros das mocinhas. Nas pelejas, Marcolino já era respeitado até mesmo por cantadores bem mais velhos e experientes.
Acontece que o sucesso do sabido é sempre a desgraça do invejoso. E quanto mais crescia a fama de Marcolino, mais aumentava o ciúme no coração de seu irmão. Sabendo que, por mais que se esforçasse, jamais se igualaria a ele, Balbino tratou de imaginar uma maneira diferente de se fazer reconhecido.
Certa vez, ele ouvira a história de um cantador famoso chamado Diogo Pinga-Fogo. O povo dizia que o tal havia vendido a alma ao Diabo em uma noite de Sexta-feira. Desde então, Pinga-Fogo se tornara invencível na arte de fazer versos e pontear a viola. Ganhou rios de dinheiro, comprou fazendas, namorou as moças mais lindas e nunca mais perdeu uma só peleja. Viveu no luxo e no conforto até a idade de noventa e nove anos, nove meses e nove dias.
Mas na hora de sua morte, o Coisa-Ruim não tardou a aparecer para cobrar a dívida. Ele chegou acompanhado por um bando de diabretes de rabo vermelho, e o cantador foi arrastado, esperneando e gritando, diretamente para as caldeiras do inferno. Dizem que está lá até hoje, assando como lingüiça de churrasco. E assim ficará até o fim dos tempos.

– Pensando bem, até que vender minha alma não seria uma má idéia – calculou Balbino – Eu me tornaria um cantador famoso e, como sou jovem, ainda poderia desfrutar por muito tempo da riqueza e da fama antes de chegar aos noventa e nove anos...
Porém, o melhor de tudo seria o prazer de acabar com toda aquela prosa de Marcolino. Ah, ele iria mostrar ao velho Juvenal quem era o mais talentoso daquela família...
Decidido a levar seu plano adiante, Balbino esperou por uma Sexta-feira que fosse de lua cheia. Por volta da meia-noite, pegou sua viola e caminhou até uma figueira velha. Ali, sentado ao pé da árvore ele cantou os seguintes versos:

Lorde Príncipe da Noite,
Ouça o que vou lhe dizer:
Uma alma bem novinha
Tenho aqui, para vender,
Pois o melhor violeiro
Deste mundo eu quero ser.


Pois não é que na mesma hora, apareceu o Capiroto, em pessoa? Ele saiu de dentro de uma nuvem de fumaça e enxofre e, para a surpresa de Balbino, não tinha chifres retorcidos e nem barba de bode velho. Sua aparência era a de um senhorzinho gorducho de meia idade com faces rosadas. Vestia um terno escuro e segurava uma pasta de couro marrom.
Após conversarem um pouco, Balbino explicou ao diabo o que ele queria em troca de sua alma. O homenzinho – que também era advogado – ouviu-o com atenção e rapidamente redigiu uma escritura de venda de almas. Assim que o documento ficou pronto, Balbino tratou de assiná-lo.
A transação toda se deu em menos de cinco minutos. Tudo muito rápido e direto. A seguir, o capeta quebrou a viola velha de Balbino e entregou-lhe uma outra, novinha em folha, de cor negra. Depois, guardou os documentos na pasta de couro e desapareceu em meio a outra nuvem de enxofre (esta ainda mais fedorenta do que a primeira).
Balbino ainda ficou ali, sozinho, debaixo da figueira velha por mais alguns instantes. Logo depois, feliz da vida, o menino guardou sua viola nova e caminhou de volta para casa, cantarolando uns versinhos novos, que acabara de compor:

Aqui vai Mestre Balbino
Violeiro sem igual
Sou melhor que Marcolino
Ganho até de Juvenal
Sou cantador de respeito
Sou poeta genial!

terça-feira, março 29, 2005